sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

"A Vida" - João de Deus

A vida é o dia de hoje,
A vida é ai que mal soa,
A vida é sombra que foge,
A vida é nuvem que voa;
A vida é sonho tão leve
Que se desfaz como a neve
E como o fumo que se esvai:
A vida dura um momento,
Mais leve que o pensamento,
A vida leva-a o vento
A vida é folha que cai!

A vida é flor na corrente,
A vida é sopro suave,
A vida é estrela cadente,
Voa mais leve que a ave;
Nuvem que o vento nos ares,
Onda que o vento nos mares,
Uma após outra lançou,
A vida - pena caída
Da asa de ave ferida -
De vale em vale impelida
A vida o vento a levou!

"Dia de Anos" - João de Deus

Com que então caiu na asneira
De fazer na quinta-feira
Vinte e seis anos! Que tolo!
Ainda se os desfizesse...
Mas fazê-los não parece
De quem tem muito miolo!

Não sei quem foi que disse
Que fez a mesma tolice
Aqui o ano passado...
Agora o que vem, aposto,
Como lhe tomou o gosto,
Que faz o mesmo? Coitado!

Não faça tal: porque os anos
Que nos trazem? Desenganos
Que fazem a gente velho.
Faça outra coisa; que em suma
Não fazer coisa nenhuma,
Também lhe não aconselho.

Mas anos, não cais nessa!
Olhe que a gente começa
Às vezes por brincadeira,
Mas depois se se habitua,
Já não tem vontade sua,
E fá-los queira ou não queira!

"Trote e Galope" - João de Deus

Há éguas que os donos
Me gabam, é certo
Mas vistas de perto
Não passam duns monos.

A minha é tão fina
Que é só animá-la,
Já toda se inclina
Parece que fala.

Mas tem outras prendas
Tem tais predicados
Que passam por lendas
Se forem contados.

Em trote e galope
É que ela se anima
E carro em que tope
Saltou-lhe por cima.

Enquanto a Maria
Limpou a baixela,
Levou-me ela um dia
De Faro a Tondela.

Saltei a Gouveia,
Toquei em Foz Côa,
E em quase hora e meia
Entrava em Lisboa.

Das portas a casa
Fez tais diabruras,
Que três ferraduras
Chegaram em brasa.

Não há duas éguas
Assim neste mundo
Contando-se as léguas
São três por segundo.

"Portugal" - João de Lemos

Quem sou... quem fui? Toda a terra
Que o diga, que o aprendeu;
Diga-o na paz e na guerra,
Diga-o ela, que não eu!
Quem fui, que o digam cem povos,
Que o digam os climas novos
Por onde primeiro andei;
Que o digam cristãos e mouros,
Que o digam troféus e louros,
Que eu nem dizê-lo já sei!

"Os Treze Anos" - António Feliciano de Castilho

Já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro:
madrinha, casai-me
com Pedro Gaiteiro.

Já sou mulherzinha;
já trago sombreiro;
já bailo ao domingo.
coas mais no terreiro.

Já não sou Anita,
como era primeiro,
sou a senhora Ana,
que mora no outeiro.

Nos serões já canto,
nas feiras já feiro,
já não me dá beijos
qualquer passageiro.

Não quero o sargento,
que é muito guerreiro,
de barbas mui feras,
e olhar sobranceiro.

O mineiro é velho;
não quero o mineiro;
mais valem treze anos
que todo o dinheiro.

Tão-pouco me agrado
do pobre moleiro,
que vive na azenha
como um prisioneiro.

Marido pretendo
de humor galhofeiro,
que viva por festas,
que brilhe em terreiro;

Da parte, madrinha,
de Deus vos requeiro:
casai-me hoje mesmo
com Pedro Gaiteiro.

"Viola de Sereno" - Domingos Caldas Barbosa

Prometeu-me Amor doçuras,
Contentou-se em prometer;
E me faz viver morrendo
Sem acabar de morrer.

Em mim tome um triste exemplo
Quem amando quer viver;
Saiba que é viver morrendo
Sem acabar de morrer.

Cuidei que o gosto de Amor
Sempre o mesmo gosto fosse;
Mas meu Amor brasileiro
Eu não sei porque é mais doce.

Eu sei, cruel, que tu gostas,
Sim, gostas de me matar;
Morro, e por dar-te mais gosto,
Vou morrendo de vagar.

"Adeus a Coimbra" - Francisco Rodrigues Lobo

Adeus águas cristalinas,
Adeus fermosos outeiros,
Faias, choupos e salgueiros,
Lírios, flores e boninas.

Adeus fermosa lembrança,
Com quem meus males vivia,
Adeus vales de alegria,
Adeus montes de esperança.

Adeus fermoso Penedo
De quem com tantas verdades
Fiei minhas saudades,
Que me pagastes tão cedo.

Adeus  prado, adeus pastores,
Vassalos deste amor cego,
Adeus águas do Mondego,
Adeus fonte dos Amores.

"Soneto" - Luís Vaz de Camões

Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

sábado, 7 de janeiro de 2012

"E Por Vezes" - David Mourão-Ferreira

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos  E por vezes 

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tornarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

"Surdina de Natal Para os Meus Netos" - David Mourão-Ferreira

Ó David  Ó Inês
Vamos ver o Menino
inda mais pequenino
que vocês

Vamos vê-lo tapado
sob o céu do futuro
com a sombra de um muro
a seu lado

Vamos vê-lo nós três
novamente a nascer
Vamos ver se vai ser
desta vez

Pedro Tamen

Ouves, meu amor, água que brotou
no côncavo da pedra que a tua mão marcou?

Ouves, meu amor, o passo do veado
correndo no caminho que só por nós pisado?

Entendes, meu amor, a voz que fala agora
do tempo que esperou, da lenda e só demora?

Já era onde nós somos a nossa paz presente.
Só nós encontrámos nela e agora é que sente.

Alumiam-se as noites, Deméter aparece,
tu sentas-te a meu lado e o trigo reverdece,

Pedro Tamen

Hoje trago-te o vento; eu sei
que mais não pode ser o que te der.
E calo-me; o resto já to dei,
ao teu sereno pasmo de mulher.

Hoje trago-te o vento, vento,
o que ele tem mudado para nós.
(O nosso passo antigo que era lento
juntou-nos de repente numa voz.)

Hoje trago-te o vento renovado,
o vento que de longe chegou cá:
em cada monte e esquina foi lavado

para chegar ao fundo do que há
nesta pobreza de hoje, e, cá chegado,
entrar na mão de carne que to dá.

"Tempo da Lenda das Amendoeiras" - José Carlos Ary dos Santos

Era uma vez um país
na ponta do fim do mundo
onde o mar não tinha eco
onde o céu não tinha fundo.
Onde longe longe longe
mais longe que a ventania
mais longe que a flor da sombra
ou a flor da maresia
em sete lagos de lume
sete castelos de sal
sete cristais de perfume
sete lâmpadas de vinho
sete punhais de ciúme
sete coroas de azevinho
sete pétalas de mel
sete pulseiras de sal
uma princesa vivia
com sete véus de coral
sete estrelas por docel
sete pedras por degrau
sete nuvens por anel
e sete céus por caminho.

Era uma vez um país
na ponta do fim do mundo
onde o mar não tinha eco
onde o céu não tinha fundo
Onde longe longe longe
mais longe que a luz do dia
mais longe que a flor da sombra
ou a flor da ventania
uma princesa nascia
da corola do seu tempo
enquanto a neve caía
dos seus dois braços de vento.

"As Mãos" - Manuel Alegre

Com mãos se faz a paz se faz a guerra
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema - e são de terra.
Com mãos se faz a guerra - e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.

"Dançam; Dançam" - Fiama Hasse Pais Brandão

Como se no mar as ondas
não se arqueassem o bastante.

Como se na terra as pedras
não se elevassem o bastante.

Como se no ar as nuvens
não rodassem o bastante.

Como se o azul planetário
não fosse o longe bastante.

Dançam.

"Espelhos" - Gastão Cruz

O mar que em mim se espelha
e em mim se degrada
somente se assemelha
à boca derrotada

pelos usos inúteis
do amor e da fala
Ele reflecte fúteis
as imagens que exala

É o mar que me espelha
o líquido onde nada
À vida se assemelha
como uma fútil fala

"Mais" - Manuel Rui

Mais linda que a flor
de pôr no céu

Mais cedo que esta noite
antes do sol

Mais tarde do que sempre

Mais simples
do que amor.

"Imerecimento" - Tony Tcheka

Adormeço
Na luz
dos teus olhos
vejo Veneza
que não conheço

Ondulo
num círculo
de ondas
de levitação

Confesso:
não mereço
a Ternura
da gôndola
acariciando
as águas
anda a onda

"Pergunta-me" - Mia Couto

Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser

se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer

"O Primeiro Astronauta" - Mia Couto

O primeiro astronauta
devia ter sido
Silvestre José Nhamposse

Só ele
teria sacudido os pés
à entrada da Lua

Só ele
teria pedido
com suave delicadeza:
- dá licença?

"A Lenda da Bruxa" - Conceição Lima

San Malanzo era velha, muito velha.
San Malanzo era pobre, muito pobre.
Não tinha filhos, não tinha netos
Não tinha sobrinhos, não tinha afilhados
Nem primos tinha e nem enteados
Ela era muito pobre e muito velha
Muito velha e muito pobre era.
Era velha, era pobre San Malanzo
Pobre e muito velha
Velha e muito pobre
Era velha e pobre
Era pobre e velha
Velha pobre
Pobre velha
Velha
Pobre
Feiticeira.

"Ser SER" - Ondjaki

seja ruído
seja beijo
seja voo
seja andorinha
seja lago
seja pacatez de árvore
seja aterrizagem de borboleta
seja mármore de elefante
seja alma de gaivota
seja luz num olhar
seja um cardume de tardes
e grite: JÁ SOU